GENEROZZO, FRANCISCO SILVA
RIO BRANCO/AC - 2012
Resumo: Apontam-se
aqui alguns anacronismos, ambiguidades, indefinições e vazios da gestão
cultural pública no Brasil e em nosso Estado, do nível local ao nacional.
Seguem-se algumas sugestões corretivas inspiradas na sociologia, através de uma
análise que também tenta aproveitar aspectos da experiência de países como
Estados Unidos, França e Inglaterra.
Palavras-chave: política cultural; administração das artes;
campo artístico.
FONTES E
MODOS DE FINANCIAMENTO DA CULTURA
Entre as tendências já confirmadas nos
últimos 20 anos, cresce o número de países que adotam um padrão "misto"
de financiamento da cultura (Boorsma et alii, 1998), associando recursos
públicos a "fundo perdido", a receitas geradas in loco por exemplo, através
da locação de espaço e da exploração de lojas, restaurantes, estacionamentos.
Muito mais volumosos que os ganhos vindos de tais fontes, contudo, são os
recursos de origem empresarial mobilizados na rubrica do "patrocínio
corporativo". Seus objetivos, como todos sabem, é o ganho simbólico, ou de
imagem, que a associação a um evento de prestígio pode oferecer a uma
corporação e suas marcas.
A rotinização
e a intensificação do patrocínio corporativo às artes, por sua vez, reclamam a
profissionalização de intermediários e a descoberta de novas possibilidades de
lucro econômico nos mercados culturais. Até aí tudo bem; mas essa nova fonte de
recursos e a lógica de lucro que a anima põem séria questão: quais são os
efeitos disso sobre o tipo de cultura que é oferecida, a quem e a que preço? Em
suma, passa a ser necessário pensar o novo cenário distinguindo-se a dinâmica
cultural e seus efeitos sociais sob
os mencionados condicionamentos mercadológicos ou sem eles. A complicada tendência de a cultura erudita ser
envolvida na lógica da indústria cultural é algo que merece análise cuidadosa.
Vale muito a leitura de um estudo sensível de Olivier Donnat (1994) sociólogo
francês especializado em pesquisas quantitativas de hábitos e de comportamento cultural,
que mostrou à duvidosa, mas crescentemente importante função de legitimação
cultural que a mídia de massa vem assumindo.
É possível
dizer que, do vértice de seus pesos numéricos, a cultura seja a área
"número 1". Quando está robusta e saudável representa não mais de um
por cento dos orçamentos públicos, da população economicamente ativa, do
produto nacional bruto. Isso indica que um incremento significativo de sua
receita de origem governamental não deve trazer sacrifícios dramáticos a outras
áreas sociais com carências mais graves. No que tange ao patrocínio
corporativo, o mais urgente a ser discutido é se os esforços da comunidade
artística necessários para canalizá-los estão sendo recompensados com
resultados, ou se ainda prevalece muita ilusão a respeito. Mais concretamente:
se a trabalheira de encorajar centenas, milhares de artistas e produtores
culturais a preparar projetos e muitas dezenas de técnicos de governo para
recebê-los e avaliá-los esteja sendo correspondida por uma margem satisfatória
de captação, ou se a maior parte desse esforço é mesmo "para inglês
ver".
Por outro
lado, sabe-se que a maior parte (cerca de dois terços) do dinheiro que circula
na área cultural vem diretamente do bolso de quem frui (ou "consome")
cultura, ao comprar livros, discos, ingressos de teatro e cinema, etc. Assim,
pergunta-se: como é possível construir cenários da paisagem cultural sem levar
em conta orçamentos familiares e os reflexos, em sua rubrica "lazer e
cultura", das mudanças demográficas, educacionais, tecnológicas, de
estilos de vida e de renda econômica?
Essas considerações sobre as bases materiais da vida
artística levam à terceira indagação.
É raro que
qualquer debate sobre cultura, hoje, em países desenvolvidos, não vá desde logo
explicitando duas circunstâncias fundamentais: o que é afinal relevante
discutir; e quais são as qualificações necessárias ou, ao menos, desejáveis de
quem se espera envolver nas discussões.
Tal consenso
deriva da existência de uma pluralidade de interesses ativos na área cultural:
grupos, associações, organismos, revistas, fontes de financiamento, identidades
e qualificações intelectuais, técnicas, estéticas, políticas e administrativas,
em um grau ainda difícil de se imaginar no Brasil E no Acre e para as condições
brasileiras e acreanas. Tantos interesses e pontos de vista distintos se
confrontam em espaços sociais relativamente independentes entre si. Trata-se de
arenas cujos atores, em geral, conhecem seus interlocutores (efetivos e
prováveis), de modo a não desperdiçar tempo e energia falando no deserto, ou,
no extremo oposto, pregando a convertidos.
No que
concerne ao amplo, diverso, rico e abstrato mundo da cultura, é lícito dizer
que, naqueles países, há no mínimo 20 anos, uma linha divisória claramente se
impõe entre "debater cultura" (sem mais qualificativos) e aquelas
ocasiões em que cumpre entendê-la em função de um elenco delimitável e factível
de alternativas de decisão política, econômica e administrativa. Muitos dos
participantes de uma arena não têm interesse pela outra, e nela não costumam se
envolver, o que aumenta, em consequência, a produtividade da discussão em cada
uma delas. Tudo isso tem sido o visualizado no conselho de cultura do Estado do
Acre. Já que o individualismo prevalece em detrimento do coletivo.
Não é o caso
aqui, em hipótese alguma, de recusar importância à discussão dos múltiplos
pontos de vista estéticos, teóricos ou ideológicos que fundamentam as
controvérsias sobre cultura na imprensa, nos circuitos artísticos, na
universidade, ou onde seja. Porém, cabe reconhecer que a abordagem da cultura
como objeto de política e administração pública é, como se diz na gíria, um "outro
departamento". Nele não pode ser admitida aquela tão comum postura
individual de rejeição ético-ideológica do dinheiro e da economia, bem como a
dificuldade daí derivada em entender que arte e cultura dependem de sustentação
econômica e institucional como qualquer outra atividade humana. Ou seja, há
muita gente (artistas, críticos de arte e acadêmicos da "área de
humanas") que revela raro talento e vasto conhecimento ao navegar pelos
meandros da arte e captar significados invisíveis ao olhar comum, mas que se
infantiliza, emudece ou se torna agressiva quando o tema é política e gestão
cultural. Isso ocorre porque essas pessoas partilham da visão idílica segundo a
qual a presença da burocracia e do dinheiro na esfera cultural é por definição
nefasta, independentemente de análise.
A intenção
aqui é focalizar algumas questões que parecem constituir prioridades de
política e gestão cultural para o Brasil e para nosso Estado (Acre), tal como
surgem de uma visão panorâmica dessa área em países desenvolvidos e à luz da
ainda esparsa literatura brasileira, que avalia a experiência acumulada tanto
em âmbito local, quanto de Estado ou de país (Durand, 2000). Como referência
significativa, vale lembrar que o terreno da gestão cultural na França, Estados
Unidos e Inglaterra está tão lavrado que há autores que chegam mesmo a definir
"etapas" na breve história das políticas nacionais de cultura a
partir do último pós-guerra (Volkerling, 1996; Bennet, 1995).
A
FALTA DE VISÃO SISTÊMICA E DE COMPLEMENTARIDADE NA GESTÃO CULTURAL DO NOSSO
ESTADO
No Brasil,
sequer se sabe quantas prefeituras possuem secretarias de cultura e, por
conseguinte, em quantas os assuntos culturais são tratados através de
secretarias de educação, esportes e turismo, ou outra qualquer. O fato de haver
uma secretaria autônoma para cultura nos organogramas estadual e municipal não
significa necessariamente que nos locais onde isso ocorre o trato da área seja
mais eficiente, ágil e substantivamente melhor. Basta, a propósito, recordar o
desgaste que foi, em âmbito federal, a criação do Ministério da Cultura no
início do governo Sarney. Sem recursos e quadros técnicos que ao menos
mantivessem a qualidade alcançada nas gestões imediatamente anteriores, tal
"elevação" fragilizou tanto a área que foi fácil ao hostil governo
Collor lançar a pá de cal, poucos anos depois (Botelho, 2001). Porém, tão
escandalosa situação de desinformação não deixa de ser um sintoma de como ainda
está atrasada a área na maior parte do país. Já no governo do presidente Lula,
surge uma nova corrente de construção de políticas públicas para a cultura com
o ministro Gilberto Gil.
A par disso,
é indispensável notar como é tênue e casuístico o relacionamento dos três
níveis de governo nessa área, nos poucos casos em que algum intercâmbio existe.
É muito frequente as secretarias estaduais concentrarem recursos nas capitais
dos Estados, sobrepondo-se às respectivas secretarias municipais, enquanto
faltam visão e vontade sobre o que fazer no interior. O próprio Ministério da
Cultura sustenta algumas fundações que segundo se diz ficariam melhor na alçada
municipal e que se vinculam a ele pelo simples fato de se localizarem na cidade
do Rio de Janeiro, que um dia foi sede do poder federal, e não serem
reivindicadas por nenhuma outra instância.
Para se
atingir um patamar mais consistente, será necessária uma visão mais orgânica e
retrospectiva, capaz de avaliar e refletir sobre experiências prévias. Tal
estágio será tanto mais distante e inatingível quanto mais as secretarias de
cultura forem entregues a artistas e intelectuais consagrados que, na falta de
um passado de administradores e de vontade política, tenderem a se comportar
como "medalhões", julgando-se autorizados a orientar a ação de
governo por linhas que sigam apenas suas preferências pessoais. Isso sem
mencionar pior ainda aqueles secretários que são escolhidos "à força"
porque nenhum partido tenha se interessado por uma área tão pouco atrativa na
partilha do orçamento e dos cargos politicamente compensadores. Esses dirigentes
"de ocasião" com facilidade aspiram a marcar sua presença com
projetos "de impacto", que, na maioria das vezes, consistem em
"reinventar a roda".
Uma visão
orgânica para a área cultural de governo também implica conhecer a divisão do
trabalho que a lei e os costumes estabelecem entre governo e iniciativa privada
em matéria de políticas sociais. Pode-se aqui apontar a pouca clareza que o
meio artístico apresenta em relação ao que esteja ao alcance legal e político
do governo, em cada nível administrativo, em matéria de regulação,
financiamento direto, tutela e incentivos indiretos para a defesa e a promoção
das artes e do patrimônio cultural. Nessa matéria, é indispensável distinguir
aquilo que, em cada região ou localidade, está sendo suficientemente bem
resolvido pela indústria cultural, ou por manifestações espontâneas da
população, e aquilo que, com base em critérios defensáveis, o governo deve
encorajar.
Ademais,
cada gênero cultural tem seus "gargalos" próprios que só uma visão
atenta e preocupada com interdependências
pode detectar e superar. Exemplifique-se relembrando um caso singelo, mas
bastante ilustrativo: a Funarte, nos anos 80, descobriu em dado momento que
precisava ajudar fabricantes brasileiros a melhorar a qualidade de instrumentos
musicais, visto ser tão precária que não tinha sentido continuar apoiando os
grupos que os usavam sem nada propor a respeito (Botelho, 2001). Quantos casos
mais de "gargalos" detectados e superados poderiam aqui merecer
citação: certamente muito poucos, pois só acontecem raramente.
Uma visão
sistêmica é necessariamente de longo prazo, embora seja possível "fazer
explodir", do dia para a noite, o público de museus e concertos usando-se
promoção intensiva na mídia de massa e/ou transformando uma exposição ou uma
apresentação ao vivo em um "grande espetáculo". É isso que faz o
marketing cultural quando uma verba polpuda o autoriza a ambicionar uma grande
repercussão de mídia para a marca que patrocina um evento. Tanto é assim que se
criou o neologismo "espetacularização", para dar conta da carga de
"efeitos especiais" com que se reveste a manifestação artística, a
fim de torná-la "acontecimento memorável". É sempre bom que se atraia
o maior público possível, ao invés de deixar salas às moscas; todavia como reiteradamente
mostram as pesquisas, a maior parte das pessoas levadas a um evento
"espetacularizado" só voltará a eventos subsequentes se atraída por
igualmente custosa parafernália promocional. Para transformar um frequentador
ocasional em um apreciador regular de cultura, é preciso pensar a prazo mais
longo. E dar-lhe educação artística.
CONCLUSÃO
O que é
possível e desejável que o nosso Estado faça na área cultural, nos dias que
correm? Esta pergunta não tem resposta fácil, sobretudo por duas razões.
A primeira é
que a autoridade pública em cultura tem de operar com um espaço da sociedade
que é internamente subdividido em subespaços governados por lógicas diferentes a cultura erudita, a indústria
cultural e as culturas populares. Em cada um desses três espaços a autoridade
pública deve manifestar ou uma linha clara de ação ou, ao menos, uma justificativa
consistente sobre o que pode ser feito como financiamento direto, fomento
indireto ou regulação. Ou ainda, ao contrário, o que merece ficar como está,
existindo espontaneamente sem necessidade de estímulo, ajuda ou intervenção. O
Brasil é uma nação de grandes dimensões de território e população com
significativa diversidade étnica e regional o Acre na sua proporcionalidade se assemelha.
Ademais, comportam uma sólida indústria cultural e um sistema de ensino incapaz
de dinamizar mudanças de gosto, estilos de vida e lazer. Tudo isso reclama a
necessidade de uma visão mais orgânica que entenda gestão cultural como algo
mais do que simplesmente promover eventos e restaurar sítios históricos, como
até agora, quase sempre e na melhor das hipóteses, se faz.
Em segundo
lugar, faz parte das tendências de época o
apelo às artes e à cultura para ajudar na busca de soluções de problemas que
lhe são alheios. Aí entram a criação de empregos, o estímulo ao turismo, à
reciclagem de áreas urbanas deterioradas, a recuperação de infratores, a cura
mental, a reconciliação entre raças e entre religiões, a contenção da violência,
a integração de segmentos
economicamente marginalizados, a facilitação do aprendizado e vários outros
(Yúdice, 1997). Não cabe aqui discutir o tamanho, as características e o mérito
de cada uma dessas novas demandas; ao contrário, o fundamental é reconhecer
que, se os gestores públicos não forem capazes sequer de pensar orgânica e
integradamente a área cultural em suas dinâmicas internas (no plural) e em suas
interdependências, muito menos estarão preparados para entender a contribuição
que podem e devem dar a necessidades mais agudas e que dependem de diagnósticos
mais sofisticados e da interlocução com áreas de política pública, em que,
geralmente, se sabe melhor o que fazer.