terça-feira, 10 de abril de 2012

CULTURA COMO OBJETO DE POLÍTICA PÚBLICA


GENEROZZO, FRANCISCO SILVA
RIO BRANCO/AC - 2012

Resumo: Apontam-se aqui alguns anacronismos, ambiguidades, indefinições e vazios da gestão cultural pública no Brasil e em nosso Estado, do nível local ao nacional. Seguem-se algumas sugestões corretivas inspiradas na sociologia, através de uma análise que também tenta aproveitar aspectos da experiência de países como Estados Unidos, França e Inglaterra.
Palavras-chave: política cultural; administração das artes; campo artístico.

FONTES E MODOS DE FINANCIAMENTO DA CULTURA

        Entre as tendências já confirmadas nos últimos 20 anos, cresce o número de países que adotam um padrão "misto" de financiamento da cultura (Boorsma et alii, 1998), associando recursos públicos a "fundo perdido", a receitas geradas in loco  por exemplo, através da locação de espaço e da exploração de lojas, restaurantes, estacionamentos. Muito mais volumosos que os ganhos vindos de tais fontes, contudo, são os recursos de origem empresarial mobilizados na rubrica do "patrocínio corporativo". Seus objetivos, como todos sabem, é o ganho simbólico, ou de imagem, que a associação a um evento de prestígio pode oferecer a uma corporação e suas marcas.
        A rotinização e a intensificação do patrocínio corporativo às artes, por sua vez, reclamam a profissionalização de intermediários e a descoberta de novas possibilidades de lucro econômico nos mercados culturais. Até aí tudo bem; mas essa nova fonte de recursos e a lógica de lucro que a anima põem séria questão: quais são os efeitos disso sobre o tipo de cultura que é oferecida, a quem e a que preço? Em suma, passa a ser necessário pensar o novo cenário distinguindo-se a dinâmica cultural e seus efeitos sociais sob os mencionados condicionamentos mercadológicos ou sem eles. A complicada tendência de a cultura erudita ser envolvida na lógica da indústria cultural é algo que merece análise cuidadosa. Vale muito a leitura de um estudo sensível de Olivier Donnat (1994) sociólogo francês especializado em pesquisas quantitativas de hábitos e de comportamento cultural, que mostrou à duvidosa, mas crescentemente importante função de legitimação cultural que a mídia de massa vem assumindo.
        É possível dizer que, do vértice de seus pesos numéricos, a cultura seja a área "número 1". Quando está robusta e saudável representa não mais de um por cento dos orçamentos públicos, da população economicamente ativa, do produto nacional bruto. Isso indica que um incremento significativo de sua receita de origem governamental não deve trazer sacrifícios dramáticos a outras áreas sociais com carências mais graves. No que tange ao patrocínio corporativo, o mais urgente a ser discutido é se os esforços da comunidade artística necessários para canalizá-los estão sendo recompensados com resultados, ou se ainda prevalece muita ilusão a respeito. Mais concretamente: se a trabalheira de encorajar centenas, milhares de artistas e produtores culturais a preparar projetos e muitas dezenas de técnicos de governo para recebê-los e avaliá-los esteja sendo correspondida por uma margem satisfatória de captação, ou se a maior parte desse esforço é mesmo "para inglês ver".
        Por outro lado, sabe-se que a maior parte (cerca de dois terços) do dinheiro que circula na área cultural vem diretamente do bolso de quem frui (ou "consome") cultura, ao comprar livros, discos, ingressos de teatro e cinema, etc. Assim, pergunta-se: como é possível construir cenários da paisagem cultural sem levar em conta orçamentos familiares e os reflexos, em sua rubrica "lazer e cultura", das mudanças demográficas, educacionais, tecnológicas, de estilos de vida e de renda econômica?
Essas considerações sobre as bases materiais da vida artística levam à terceira indagação.
     É raro que qualquer debate sobre cultura, hoje, em países desenvolvidos, não vá desde logo explicitando duas circunstâncias fundamentais: o que é afinal relevante discutir; e quais são as qualificações necessárias ou, ao menos, desejáveis de quem se espera envolver nas discussões.
        Tal consenso deriva da existência de uma pluralidade de interesses ativos na área cultural: grupos, associações, organismos, revistas, fontes de financiamento, identidades e qualificações intelectuais, técnicas, estéticas, políticas e administrativas, em um grau ainda difícil de se imaginar no Brasil E no Acre e para as condições brasileiras e acreanas. Tantos interesses e pontos de vista distintos se confrontam em espaços sociais relativamente independentes entre si. Trata-se de arenas cujos atores, em geral, conhecem seus interlocutores (efetivos e prováveis), de modo a não desperdiçar tempo e energia falando no deserto, ou, no extremo oposto, pregando a convertidos.
        No que concerne ao amplo, diverso, rico e abstrato mundo da cultura, é lícito dizer que, naqueles países, há no mínimo 20 anos, uma linha divisória claramente se impõe entre "debater cultura" (sem mais qualificativos) e aquelas ocasiões em que cumpre entendê-la em função de um elenco delimitável e factível de alternativas de decisão política, econômica e administrativa. Muitos dos participantes de uma arena não têm interesse pela outra, e nela não costumam se envolver, o que aumenta, em consequência, a produtividade da discussão em cada uma delas. Tudo isso tem sido o visualizado no conselho de cultura do Estado do Acre. Já que o individualismo prevalece em detrimento do coletivo.
        Não é o caso aqui, em hipótese alguma, de recusar importância à discussão dos múltiplos pontos de vista estéticos, teóricos ou ideológicos que fundamentam as controvérsias sobre cultura na imprensa, nos circuitos artísticos, na universidade, ou onde seja. Porém, cabe reconhecer que a abordagem da cultura como objeto de política e administração pública é, como se diz na gíria, um "outro departamento". Nele não pode ser admitida aquela tão comum postura individual de rejeição ético-ideológica do dinheiro e da economia, bem como a dificuldade daí derivada em entender que arte e cultura dependem de sustentação econômica e institucional como qualquer outra atividade humana. Ou seja, há muita gente (artistas, críticos de arte e acadêmicos da "área de humanas") que revela raro talento e vasto conhecimento ao navegar pelos meandros da arte e captar significados invisíveis ao olhar comum, mas que se infantiliza, emudece ou se torna agressiva quando o tema é política e gestão cultural. Isso ocorre porque essas pessoas partilham da visão idílica segundo a qual a presença da burocracia e do dinheiro na esfera cultural é por definição nefasta, independentemente de análise.
        A intenção aqui é focalizar algumas questões que parecem constituir prioridades de política e gestão cultural para o Brasil e para nosso Estado (Acre), tal como surgem de uma visão panorâmica dessa área em países desenvolvidos e à luz da ainda esparsa literatura brasileira, que avalia a experiência acumulada tanto em âmbito local, quanto de Estado ou de país (Durand, 2000). Como referência significativa, vale lembrar que o terreno da gestão cultural na França, Estados Unidos e Inglaterra está tão lavrado que há autores que chegam mesmo a definir "etapas" na breve história das políticas nacionais de cultura a partir do último pós-guerra (Volkerling, 1996; Bennet, 1995).


A FALTA DE VISÃO SISTÊMICA E DE COMPLEMENTARIDADE NA GESTÃO CULTURAL DO NOSSO ESTADO
       
        No Brasil, sequer se sabe quantas prefeituras possuem secretarias de cultura e, por conseguinte, em quantas os assuntos culturais são tratados através de secretarias de educação, esportes e turismo, ou outra qualquer. O fato de haver uma secretaria autônoma para cultura nos organogramas estadual e municipal não significa necessariamente que nos locais onde isso ocorre o trato da área seja mais eficiente, ágil e substantivamente melhor. Basta, a propósito, recordar o desgaste que foi, em âmbito federal, a criação do Ministério da Cultura no início do governo Sarney. Sem recursos e quadros técnicos que ao menos mantivessem a qualidade alcançada nas gestões imediatamente anteriores, tal "elevação" fragilizou tanto a área que foi fácil ao hostil governo Collor lançar a pá de cal, poucos anos depois (Botelho, 2001). Porém, tão escandalosa situação de desinformação não deixa de ser um sintoma de como ainda está atrasada a área na maior parte do país. Já no governo do presidente Lula, surge uma nova corrente de construção de políticas públicas para a cultura com o ministro Gilberto Gil.
        A par disso, é indispensável notar como é tênue e casuístico o relacionamento dos três níveis de governo nessa área, nos poucos casos em que algum intercâmbio existe. É muito frequente as secretarias estaduais concentrarem recursos nas capitais dos Estados, sobrepondo-se às respectivas secretarias municipais, enquanto faltam visão e vontade sobre o que fazer no interior. O próprio Ministério da Cultura sustenta algumas fundações que segundo se diz ficariam melhor na alçada municipal e que se vinculam a ele pelo simples fato de se localizarem na cidade do Rio de Janeiro, que um dia foi sede do poder federal, e não serem reivindicadas por nenhuma outra instância.
        Para se atingir um patamar mais consistente, será necessária uma visão mais orgânica e retrospectiva, capaz de avaliar e refletir sobre experiências prévias. Tal estágio será tanto mais distante e inatingível quanto mais as secretarias de cultura forem entregues a artistas e intelectuais consagrados que, na falta de um passado de administradores e de vontade política, tenderem a se comportar como "medalhões", julgando-se autorizados a orientar a ação de governo por linhas que sigam apenas suas preferências pessoais. Isso sem mencionar pior ainda aqueles secretários que são escolhidos "à força" porque nenhum partido tenha se interessado por uma área tão pouco atrativa na partilha do orçamento e dos cargos politicamente compensadores. Esses dirigentes "de ocasião" com facilidade aspiram a marcar sua presença com projetos "de impacto", que, na maioria das vezes, consistem em "reinventar a roda".
        Uma visão orgânica para a área cultural de governo também implica conhecer a divisão do trabalho que a lei e os costumes estabelecem entre governo e iniciativa privada em matéria de políticas sociais. Pode-se aqui apontar a pouca clareza que o meio artístico apresenta em relação ao que esteja ao alcance legal e político do governo, em cada nível administrativo, em matéria de regulação, financiamento direto, tutela e incentivos indiretos para a defesa e a promoção das artes e do patrimônio cultural. Nessa matéria, é indispensável distinguir aquilo que, em cada região ou localidade, está sendo suficientemente bem resolvido pela indústria cultural, ou por manifestações espontâneas da população, e aquilo que, com base em critérios defensáveis, o governo deve encorajar.
        Ademais, cada gênero cultural tem seus "gargalos" próprios que só uma visão atenta e preocupada com interdependências pode detectar e superar. Exemplifique-se relembrando um caso singelo, mas bastante ilustrativo: a Funarte, nos anos 80, descobriu em dado momento que precisava ajudar fabricantes brasileiros a melhorar a qualidade de instrumentos musicais, visto ser tão precária que não tinha sentido continuar apoiando os grupos que os usavam sem nada propor a respeito (Botelho, 2001). Quantos casos mais de "gargalos" detectados e superados poderiam aqui merecer citação: certamente muito poucos, pois só acontecem raramente.
        Uma visão sistêmica é necessariamente de longo prazo, embora seja possível "fazer explodir", do dia para a noite, o público de museus e concertos usando-se promoção intensiva na mídia de massa e/ou transformando uma exposição ou uma apresentação ao vivo em um "grande espetáculo". É isso que faz o marketing cultural quando uma verba polpuda o autoriza a ambicionar uma grande repercussão de mídia para a marca que patrocina um evento. Tanto é assim que se criou o neologismo "espetacularização", para dar conta da carga de "efeitos especiais" com que se reveste a manifestação artística, a fim de torná-la "acontecimento memorável". É sempre bom que se atraia o maior público possível, ao invés de deixar salas às moscas; todavia como reiteradamente mostram as pesquisas, a maior parte das pessoas levadas a um evento "espetacularizado" só voltará a eventos subsequentes se atraída por igualmente custosa parafernália promocional. Para transformar um frequentador ocasional em um apreciador regular de cultura, é preciso pensar a prazo mais longo. E dar-lhe educação artística.
       
CONCLUSÃO

        O que é possível e desejável que o nosso Estado faça na área cultural, nos dias que correm? Esta pergunta não tem resposta fácil, sobretudo por duas razões.
        A primeira é que a autoridade pública em cultura tem de operar com um espaço da sociedade que é internamente subdividido em subespaços governados por lógicas diferentes a cultura erudita, a indústria cultural e as culturas populares. Em cada um desses três espaços a autoridade pública deve manifestar ou uma linha clara de ação ou, ao menos, uma justificativa consistente sobre o que pode ser feito como financiamento direto, fomento indireto ou regulação. Ou ainda, ao contrário, o que merece ficar como está, existindo espontaneamente sem necessidade de estímulo, ajuda ou intervenção. O Brasil é uma nação de grandes dimensões de território e população com significativa diversidade étnica e regional o Acre na sua proporcionalidade se assemelha. Ademais, comportam uma sólida indústria cultural e um sistema de ensino incapaz de dinamizar mudanças de gosto, estilos de vida e lazer. Tudo isso reclama a necessidade de uma visão mais orgânica que entenda gestão cultural como algo mais do que simplesmente promover eventos e restaurar sítios históricos, como até agora, quase sempre e na melhor das hipóteses, se faz.
        Em segundo lugar, faz parte das tendências de época o apelo às artes e à cultura para ajudar na busca de soluções de problemas que lhe são alheios. Aí entram a criação de empregos, o estímulo ao turismo, à reciclagem de áreas urbanas deterioradas, a recuperação de infratores, a cura mental, a reconciliação entre raças e entre religiões, a contenção da violência,  a integração de segmentos economicamente marginalizados, a facilitação do aprendizado e vários outros (Yúdice, 1997). Não cabe aqui discutir o tamanho, as características e o mérito de cada uma dessas novas demandas; ao contrário, o fundamental é reconhecer que, se os gestores públicos não forem capazes sequer de pensar orgânica e integradamente a área cultural em suas dinâmicas internas (no plural) e em suas interdependências, muito menos estarão preparados para entender a contribuição que podem e devem dar a necessidades mais agudas e que dependem de diagnósticos mais sofisticados e da interlocução com áreas de política pública, em que, geralmente, se sabe melhor o que fazer.

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